Cecília Mãe
por paulo costa/veteranskater
Ela é figura onipresente no meio do skate brasileiro desde os anos 1970. Trabalhou nas principais revistas dos anos 1980, afastou-se um pouco para criar sua filha mas o amor pelo skateboard e pelos skatistas a trouxe de volta com seus textos bem peculiares e com bastante humor.
(entrevista feita em 2011)
3 em 1; como foi seu início no meio do skate? Você frequentava os picos históricos como Wave Park e Wave Cat?
Me apaixonei pelo skate quando conheci os Ibira Boys, em 1978. Eles não eram os ídolos da época, mas foram os poucos que continuaram andando de skate, apesar da falta de material, tênis adequado, revistas… Nem tinha onde comprar! Eles eram um grupo de meninos muito, muito inteligentes. Me apaixonei pelo grupo, como um todo.
Quem eram os caras que andavam no Ibira nessa época?
Os primeiros que conheci foram Bê, (Fabio) Bolota, Eddie Gralha, Edu Brito, (Paulo) Folha, Hatsuo Pop, Hélio Greco, Jorge Kuge, Pastel, Q Suco… Mas, na sequência, foram aparecendo outros, como Chorão, Daniel Kim, Pois é, Thronn…
Qual a origem do seu apelido?
Acho que qualquer mulher naquela situação, de ser uma das poucas no meio de um bando de homens, acabaria tendo este apelido. Eu via os meninos jogarem os tênis imundos na mala, junto com cueca, ia lá, arrumava dentro de um saco plástico. Lembrava de levar água, mandava escovarem os dentes, puxava a orelha se zoavam alguma menina [que não merecia], cuidava quando se machucavam, essas coisas. O apelido veio do Folha e do seu irmão Folhinha, num Campeonato Brasileiro em Guará. O Thronn e o Tommy estavam no teto do carro do Luciano [RJ] e, numa curva, os dois caíram. O Thronn, que tem um santo forte, caiu em cima do Tommy e o coitado ficou metade em carne viva. Bem na noite da festa de encerramento. Claro, fiquei cuidando do moleque e eles começaram a me chamar de Mãe.
Você trabalhou na Overall e Yeah. Como foi sua entrada nas revistas?
Na verdade, eu comecei por acaso, na Yeah!. Fiquei da número 1 até a 7 [de 85 a 87]. Nesta época, não tinha quase ninguém no cenário do skate e eu era das poucas que tinha duas grandes vantagens; acreditar na ideia, mesmo depois de mil tentativas frustradas e saber um português razoável kkkkk. Trabalhava com os amigos que eu encontrava no Ibira todo fim de semana.
No fim de 87, saí de São Paulo e acabei fazendo um freela pra Overall. Quando voltei pra casa, lá por 1989, passei a integrar a equipe em caráter fixo e fiquei até a revista fechar, em 1990.
O que parece é que a Yeah! tinha um caráter mais anárquico e a Overall era mais, digamos, organizada…Aquela coisa tipo Thrasher e Transworld. Era isso mesmo?
A Yeah! era uma bagunça maravilhosa e eu estava numa fase muito thrash da vida. Faz as contas: 7 edições em dois anos? (rsrs) Pior que trimestral! A Overall fazia parte de uma estrutura mais profissional, que era a editora Trip. A gente era livre, mas tinha que ter responsabilidade. Podíamos, sim, criar, meter o pau, questionar, zoar o barraco, contanto que cumpríssemos o prazo. Acho que a imagem “Thrasher” da Yeah! veio do papel jornal, da cara de zine, do uso de graphics do Rick e do Tai Tai. Era uma coisa mais visual.
Fale sobre aquela bela capa da Overall que você protagonizou.
Vixe! Bom, quem me conhece, sabe que detesto tirar foto. Sempre corri de câmera, mas trabalhava com fotógrafos que viviam me aterrorizando, justamente porque eu odiava. Amigo é pra essas coisas. Enfim, uma noite, bati o carro do meu pai e deformei metade do rosto. Fiquei parecendo o Fantasma da Ópera. Fiz um propósito interno de aceitar posar para o primeiro que quisesse me fotografar, mas ninguém perdia tempo. Tinham certeza de que eu não iria aceitar. Até que o Pisco pediu e disse que ninguém ia ver, que era só para o portfólio pessoal dele. Ele fez as fotos e o milagre de me deixar muito bonita, mesmo com aquela vibe Jeckyll & Hyde. Lindo, mas imagina o que eu senti, quando vi a revista! Nossa, achei o fim do mundo. Arrancava todas as capas que apreciam na minha mão. Hoje, só tenho uma.
Você já era escritora quando foi trabalhar nas revistas de skate?
Eu não sabia que era escritora. Pra mim, a gente aprendia a escrever e simplesmente saía por aí registrando o que pensamos sobre o que mandassem ou pedissem. E era o que eu fazia. Descobri que era escritora aos poucos. Durante anos, achei pretensão e rejeitei a ideia. Mas, lá pelo fim da década de 90, quando entendi que não era tão fácil para outras pessoas, ficou difícil pra mim, também. É uma bênção e um fardo.
Você trabalha com que tipo de literatura?
Apesar da maioria dos meus textos ser sobre skate, adoro escrever sobre quase tudo. Gosto de contar histórias do meu jeito. Quando quero inventar realidades e pessoas, faço textos para teatro e curtas. Até novela eu já fiz! Meu problema é que eu não consigo escrever tragédia. Tudo sai cômico! É um limite, como criadora.
Você tenho algum trabalho publicado?
Só encenei dois textos dramáticos. A primeira peça chamava Domingo e Era Linda. A segunda, Elas Nunca Foram Dentistas, uma porcaria pretensiosa. Horrível. Peguei trauma. Teatro é para os guerreiros e eu sou muito, muito covarde. Perdi a conta da quantidade de curtas que escrevi. Algumas foram encenadas em casas noturnas, outras quase viraram filme. Quase (rsrs). Mas escrevo pra mim e pros amigos lerem, de vez em quando. Tenho uma gravação muito boa, em que o Pois É e o Speto fazem várias vozes. Eles são muito engraçados.
É muito fácil de identificar um texto seu por causa do seu estilo de escrever. Você sente facilidade? As palavras saem rápido?
Ah, não saem não! As palavras são uns Erês! Espíritos moleques, brincalhões, que vivem soltos por aí. Quando elas estão de bom humor, a gente deita e rola, mas, quando fogem… Não tem jeito. Às vezes, fico um tempão com cara de idiota, tentando encontrar aquela palavra exata, sem sucesso. Horas, às vezes dias depois, quando estou lavando louça, a biatch aparece e, com ela, toda uma linha de raciocínio…
Daí, vale a pena. Quando elas viram um bordado no papel… Vale tudo: a insônia, a angústia, a tensão, os vários maços de cigarro… Ou seja, dane-se o pulmão, o fígado e a vesícula! Elas não me deixaram…. Eu amo as palavras…
Um escritor chamado Gene Fowler disse tudo: “Escrever é fácil. É só se sentar, encarando o papel em branco, até as gotas de sangue brotarem na sua testa”. E não se iluda, nunca li nada do cara. Só gosto da frase, mesmo.
Você tem alguma inspiração? Algum(a) escritor(a) que se espelha?
Não. Gosto de ler muitos autores, mas não me espelho em nenhum.
Quem são seus skatistas preferidos?
Sem chance de responder essa! Vou mencionar oitocentos e esquecer uns mil?
Você passou um tempo afastada do skate ou é uma impressão errada?
Só me afastei de verdade quando tive minha filha. Fiquei uns cinco, seis anos justificando meu apelido… Depois, fiquei fora da mídia, na verdade. Ia aos campeonatos, mas não escrevia sobre eles.
Por falar em sua filha, ela gosta de skate?
Adora!
E campeonatos, você acha importante? Acha importante a parte organizacional com associações, federações e confederação ou prefere o modelo americano onde isso não é muito valorizado, mas sim vídeos, demos, o estilo de vida skate mesmo…
Vamos por quatro partes:
- Pra mim, campeonato é uma ótima desculpa pra ver os amigos. Para o skate, tem sua importância, já que muitos começam a andar depois de assistirem um campeonato. Só não gosto da rigidez que os eventos impõem. Acho o fim do mundo se o cara chega atrasado e não pode correr, mesmo que dê tempo de encaixar nas últimas baterias. Se a conduta dele interfere na pontuação, é pior ainda. Ele não tem que ser legal, educado ou fácil de lidar. Ele tá ali pra andar de skate e é isto que deve estar sendo julgado, não suas atitudes. Afinal, é um campeonato de skate ou um show de adestramento?
- Algumas entidades que gerem o skate deixam muito a desejar e não é pra menos. Num plano ideal, elas deveriam lutar pelos interesses do skate, estudar as leis de incentivo, conseguir apoio do poder público, enfim, ser um grupo de skatistas, com aval dos outros para responder por todos. Só que, se o skate exige tanta dedicação, os membros deveriam ser bem remunerados, talvez pelas marcas, para se dedicarem à causa integralmente. Ou viver de uma porcentagem do que for arrecadado com as leis de incentivo ao esporte. Exigir que os caras larguem suas próprias vidas e até parem de andar de skate, só por ideal e de graça, é injusto.
- Quanto às alternativas para campeonatos, adoro vídeos e demos. Muitos talentos se lançam com vídeos, conseguem chamar a atenção da mídia e até patrocínio. É bom, porque não fica confinado a uma panela de privilegiados. Demo é legal para os fãs que não moram em grandes centros conhecerem os skatistas de perto e passar a admirá-los ainda mais.
- O estilo de vida skate não exclui competições. Aliás, não exclui nada. Isto é que é bom: no skate, pode tudo.
Como foi pra você aquela fase de falência do skate brasileiro nos anos 1990?
Para mim, pessoalmente, foi menos doloroso, porque coincidiu com o nascimento da minha nega. A Overall fechou em setembro e eu engravidei no mês seguinte. Mas sempre acompanhava o que acontecia e lembro que foi horrível. As revistas, marcas e lojas fechando; muitos amigos desempregados, um horror. Na verdade, foi o mercado que decaiu e o skate reapareceu cada vez mais forte, como está, até hoje.
Tendo acompanhado tanto tempo o skate, como você descreveria essas fases do skate brazuca?
A gente só fazia o que gostava. A diferença é que o resto da humanidade desprezava o skate, nesta época. Ninguém tinha dinheiro, então éramos mais unidos. Dormiam 15 vagabundos num quartinho de hotel fuleiro, a gente rachava PF, viajava no mesmo ônibus, enfiava uma dúzia no carro pra ir pra sessão ou balada… Hoje, a gente ainda é uma família, mas cada um viaja num vôo, fica num hotel diferente e pega seu próprio táxi pra chegar num campeonato. Quando se encontra é igual, mas passamos menos tempo juntos, o que é uma pena…
Você fez parte do cast da revista Tribo por quantos anos?
Sempre fiz freela pra revista e, em 2005 fui trabalhar lá. Fiquei até o ano passado mas, apesar de não bater mais cartão, continuo escrevendo pra ela. Ah, era muito legal. Imagina, eu ficava na redação com pessoas que eu amo e sempre aparecia mais umas duas dúzias de amores meus toda semana. A gente ria o tempo todo. Sempre que posso, encontro a família. Quando saí, não podia ver ninguém de lá, que eu começava a chorar…
E agora no Skate Paradise? Qual sua função no programa?
Comecei no fim do ano passado. Desenvolvo algumas pautas, faço reportagens e escrevo no blog do programa e no site da ESPN. Sou muito sortuda, porque também adoro todo mundo que trabalha na Fuego e a gente sempre está dando risada. Jesus me ama…
Você já veio no Nordeste? O que conhece do skate daqui?
Ah, a cobertura do Brasil… Quem dera! Nesse país, tem que ser gringo pra ir pro céu! Só conheço a Bahia e já morro de amores por ela. Quanto ao skate, sei que é a região com as melhores pistas do continente e que sempre revelou grandes talentos. Nos anos 80, só conhecia você, o Gato e o Ilzeli e um pouco da cena de Recife, inclusive o Og, por causa do Thronn e dos irmãos Matsui. Depois, aprendi bem mais, convivendo com a Aracaju Family, trabalhando com o Detefon e o Fellipe Francisco e conversando com o Vitor Sagaz. Mas, de novo, se citar alguns, vou deixar dezenas de fora.
Que tipo de música você gosta?
São tantas… Depende. Adoro música chinesa, japonesa e de Java, apesar de só ter um disco. Gosto de música mineira, Cocteau, New Order, Beastie Boys, canto gregoriano, Virgínia Rodrigues, alguns pontos de Candomblé…
Agora nos diga; já tentou andar de skate?
Já. Ganhei um de aniversário e, no primeiro tombão de bunda, desencanei! Sou muito, muito covarde.
Existe uma modalidade do skate que você goste mais?
Não.
Você identifica mudança no skatista de hoje? Se sim, quais?
Não. O skatista continua sendo inteligente, ligeiro, criativo, cavalheiro e sempre se recusou a engolir desaforo. É uma elegância da rua, mesmo, sabe? Um código de ética rígido e bastante seletivo. Comédia, no skate, tem vida curta. Se sobrevive, é por piedade.
A resposta me parece óbvia, mas, skatista é atleta?
Não! Eu mesma já cometi esse erro, mas atleta pratica atletismo: corrida, lançamentos e saltos, como me ensinou mestre Cesinha Chaves, em um de seus famosos discursos…
Gostaria de fazer alguma consideração final?
Muito obrigada por achar que eu sou assunto, ainda mais neste blog, que só tem clássicos! E beijão, aqui do térreo, pra galera da cobertura!
Valeu Ceci, obrigado pela entrevista.
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